T E X T O S

terça-feira, 16 de novembro de 2010

AS DIRETAS-JÁ E A REDEMOCRATIZAÇÃO DO BRASIL

O Movimento pelas Diretas-Já constituiu-se num marco da História do Brasil, pois foi um dos pilares de sustentação da redemocratização, na primeira metade da década de oitenta. Em 1984, pelos quatro cantos do país, centenas de milhares de pessoas, indepentende de posições contrárias, se juntaram com um único objetivo: conquistar o direito ao voto direto para presidente da República. A ditadura militar, sob a falácia de uma revolução, instalou-se no país em 1964, e, de 1968 a 1975, foi sangüinária, valendo-se de métodos execráveis para manter o controle do sistema. A tortura, o exílio e, principalmente, o assassinato, eram mecanismos utilizados para intimidar, afastar ou acabar de vez com aqueles que lutavam pelos direitos coletivos – acima de tudo, a liberdade. Depois de 1975, a ditadura tornou-se relativamente branda e, em 1984, quando o presidente era o general João Batista Figueiredo, não foi possível impedir a chamada abertura política, àquela altura inevitável, e o estágio seguinte foi a redemocratização.
Mas, antes do júbilo da redemocratização, o Movimento pelas Diretas-Já teve as expectativas frustradas, quando o Congresso Nacional não aprovou as eleições diretas. O ranço militar, com seu conservadorismo exacerbado, não permitiu que os brasileiros pudessem escolher diretamente o presidente da República, permanecendo um jejum de democracia de mais de duas décadas.
O presidente da República deveria ser escolhido pelo Congresso Nacional, e os candidatos eram dois. Paulo Maluf, protótipo construído pela ditadura militar, representava as oligarquias que curvavam-se diante dos carrascos militares. Tancredo Neves, exemplo de resistência à ditadura militar, tinha o apoio da maioria dos brasileiros, mesmo não podendo receber seus votos. Resultado. Tancredo Neves foi eleito presidente da República, alicerçado pelo que fora construído pelos heróis que lutaram contra os desmandos dos militares, principalmente aqueles que sacrificaram a própria vida, verdadeiros mártires, e também todos que participaram, de alguma maneira, do Movimeto pelas Diretas-Já. Alegria geral.
Entretanto, a alegria foi interrompida quando o presidente da República, recém-eleito, faleceu, sem ter tempo de governar o país. Fatalidade? Conspiração? Há defensores dessas duas teses, mas o fato é que, naquele momento, o país passou a ser governado por um quase desconhecido, um tal de José Ribamar Ferreira, ou José Sarney, escritor e político experiente do Maranhão, vice-presidente da República, cujo sobrenome pomposo, aristocrático, americanizado, contrastava com a infância humilde, mesmo simplória. Na verdade, o sobrenome era um apelido herdado de seu pai, que chamava-se Ney e era conhecido entre os americanos que desembarcavam nos portos maranhenses, onde trabalhava, como “sir Ney” (“senhor Ney”). Pois esse quase desconhecido, José Sarney, um civil como Tancredo Neves, governou o país continental chamado Brasil, de 1986 a 1989, sob o lema “Tudo pelo Social”. Na realidade, foi uma espécie de governo transitório entre a ditadura militar e a redemocratização, uma quase escolha democrática, sem o voto direto. E em que pesem alguns desastres econômicos (quem não se lembra dos tempos negros em que a inflação pairava na estratosfera, e não havia produtos para comprar, como carne?), em seu goveno, entre outras coisas, o direito à liberdade de expressão ganhou contornos consideráveis. Mas como teria sido o governo de Tancredo Neves? Nunca haverá uma resposta.
(Elson Teixeira Cardoso)

FONTE: http://elsonteixeiracardoso.blogspot.com/2007/01/as-diretas-j-e-redemocratizao-do-brasil.html

GLOBALIZAÇAO EM DEBATE (Texto para os 3os. Anos do Ensino Médio)

Cidadania e direitos num mundo globalizado: algumas notas para discussão

Marcos César Alvarez (UNESP/Marília)

Fonte: http://globalization.sites.uol.com.br/cidadani.htm

"(...) os direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando o aumento do poder do homem sobre o homem – que acompanha inevitavelmente o progresso técnico, isto é, o progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens – ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo, ou permite novos remédios para suas indigências: ameaças que são enfrentadas através de demandas de limitações do poder; remédios que são providenciados através da exigência de que o mesmo poder intervenha de modo protetor.(...) Embora as exigências de direitos possam estar dispostas cronologicamente em diversas fases ou gerações, suas espécies são sempre – com relação aos poderes constituídos – apenas duas: ou impedir os malefícios de tais poderes ou obter seus benefícios."

Norberto Bobbio

Introdução

Cresce, no debate atual sobre os efeitos da assim chamada globalização na sociedade brasileira, uma discussão mais conseqüente que busca caracterizar a complexa relação existente entre as transformações econômicas, sociais, culturais e políticas que ocorrem em âmbito mundial e seus desdobramentos no plano da cidadania e dos direitos. Começa-se a sair de uma visão simplista acerca destas transformações – compartilhada paradoxalmente tanto por apologistas quanto por alguns críticos da globalização – que se limitava a constatar as novas características da economia mundial, considerando-as como "fatos irreversíveis" que se refletiriam automaticamente nas demais esferas sociais, para análises mais rigorosas que buscam delimitar melhor os diferentes conjuntos de transformações em curso e as opções políticas que a partir deles se desenham.
O objetivo deste artigo consiste justamente em identificar – através de uma breve revisão bibliográfica, voltada sobretudo para textos recentemente publicados no Brasil – algumas questões presentes neste debate acerca da relação entre globalização e cidadania. Iniciaremos nossa reflexão com uma discussão do próprio termo "globalização", para a seguir expor os novos obstáculos que se apresentam para a expansão da cidadania na contemporaneidade.

A "globalização" como problema

Ao se discutir a relação entre globalização e cidadania, o primeiro ponto a ser ressaltado é que o termo "globalização" deve ser empregado apenas com muitas reservas. Isto porque a própria vulgarização do termo – utilizado indiscriminadamente no discurso político e nos meios de comunicação de massa na atualidade – torna-o praticamente destituído de significado analítico mais consistente. Tanto parece ser assim, que a maioria dos trabalhos conseqüentes sobre o tema começam inevitavelmente por uma definição mínima do que se entende pela expressão e, muitas vezes, essas definições são bastante díspares.

Adotando um ponto de vista mais descritivo, podemos dizer que o termo globalização tem sido utilizado sobretudo para caracterizar um conjunto aparentemente bastante heterogêneo de fenômenos, que ocorreram ou ganharam impulso a partir do final dos anos 80 – como a expansão das empresas transnacionais, a internacionalização do capital financeiro, a descentralização dos processos produtivos, a revolução da informática e das telecomunicações, o fim do socialismo de Estado na ex-URSS e no Leste europeu, o enfraquecimento dos Estados Nacionais, o crescimento da influência cultural norte-americana, etc. – mas que estariam desenhando todos uma efetiva "sociedade mundial", ou seja, uma sociedade na qual os principais processos e acontecimentos históricos ocorrem e se desdobram em escala global:

"Ocorre que o globo não é mais exclusivamente um conglomerado de nações, sociedades nacionais, estados-nações, em sua relações de interdependência, dependência, colonialismo, imperialismo, bilateralismo, multilateralismo. Ao mesmo tempo, o centro do mundo não é mais voltado só ao indivíduo, tomado singular e coletivamente como povo, classe, grupo, minoria, maioria, opinião pública. Ainda que a nação e o indivíduo continuem a ser muito reais, inquestionáveis e presentes todo o tempo, em todo o lugar, povoando a reflexão e a imaginação, ainda assim já não são "hegemônicos". Foram subsumidos, real ou formalmente, pela sociedade global, pelas configurações e movimentos da globalização. A Terra mundializou-se, de tal maneira que o globo deixou de ser uma figura astronômica para adquirir mais plenamente sua significação histórica." (Ianni, 1996, p.13-14)

Se entendemos, numa aproximação inicial, a globalização deste modo, um primeiro ponto a ressaltar é que, sem nenhuma dúvida, essa constituição de uma verdadeira "história mundial" não é uma novidade absoluta, mas sim resultado de processos cujas origens remontam à própria constituição da modernidade, sendo que a reflexão sociológica clássica, para ficarmos apenas no âmbito de uma disciplina, já havia abordado tais processos. Por exemplo, as comemorações recentes acerca dos 150 anos do Manifesto Comunista indicam com razão que Marx e Engels já haviam apontado para a constituição de uma sociedade mundial, fruto da expansão do capitalismo (cf. Marx, 1996). E Max Weber, por sua vez, tematizou exaustivamente o processo de universalização dos valores ocidentais e suas conseqüências em termos de racionalização da cultura no mundo moderno (cf. Weber, 1992).

Assim, ao contrário do que a vulgarização do termo globalização parece insinuar, não se trata de um processo radicalmente novo – ao menos no seu efeito de conjunto, a produção de uma sociedade mundial – e nem de algo para o qual as análises clássicas não tenham apontado anteriormente.

Outro aspecto a ser criticado, presente em muitas análises sobre o tema, é a visão predominantemente economicista das transformações históricas que estão ocorrendo neste final de século. Para muitos analistas, as transformações econômicas repercutiriam automaticamente no conjunto da sociedade, devendo todas as demais esferas sociais se adequarem cegamente aos imperativos da economia de mercado mundializada. Aqui também os clássicos da sociologia poderiam contribuir para uma visão menos reducionista da questão, pois nem mesmo Marx via a relação entre a estrutura econômica e a superestrutura social, política e cultural de modo tão simplista, ao passo que Weber e outros autores enfatizaram a complexidade da sociedade moderna, estruturada em torno de esferas de ação cada vez mais autônomas, o que inviabilizaria qualquer teoria que tentasse reduzi-la a um único motor de transformações.

Um terceiro aspecto a ser criticado, é a idéia de que a globalização seria um processo homogêneo, que tenderia a se expandir e uniformizar todas as sociedade do planeta. Ora, por um lado, a constituição de uma economia global na atualidade e o conseqüente enfraquecimento dos Estados nacionais não aponta para a constituição de um espaço social cada vez mais uniforme e indiferenciado, onde todos compartilhariam os mesmos valores e costumes universais. Pelo contrário, o que vemos é um renascimento de valores locais, de reivindicações culturais e políticas regionais, anteriormente sufocadas no interior do Estado-nação, sendo que, neste aspecto, a sociedade global "pode ser muito menos ‘pausterizadora’ das culturas nacionais do que as tradicionais nações" (Dowbor, 1996, p. 63). Em outras palavras, as transformações históricas que estão ocorrendo na atualidade não eliminam a dialética existente entre o local e global, apenas redefinem as formas de articulação entre estes diferentes planos.

Por outro lado, a globalização também não pode ser vista como um processo homogêneo sobretudo porque um dos seus principais efeitos consiste justamente em aumentar as desigualdades sociais e a exclusão social, tanto no interior das nações quanto no plano internacional. No interior das nações percebe-se claramente um distanciamento cada vez maior entre os indivíduos que podem usufruir dos benefícios de uma economia globalizada e aqueles que estão condenados ao desemprego e à marginalidade. No plano das relações entre as nações, por sua vez, nem todas apresentam a mesma capacidade de adaptação aos novos rumos da economia globalizada, o que também aumenta a distância entre as nações ricas e as nações pobres.

Portanto, muito mais do que um processo de homogeneização crescente, sinônimo de uniformização e igualdade em termos mundiais, a globalização parece levar ao crescimento das desigualdades e da exclusão social. E é neste plano justamente que o tema da globalização coloca em cheque a noção de cidadania, pois se o conjunto de processos que chamamos de globalização tende a aumentar as desigualdades sociais e a exclusão tanto no plano local quanto no plano global, então a expansão da cidadania – que na definição clássica de Marshall (1967) consiste na possibilidade dos indivíduos participarem igualmente como membros integrais de uma comunidade – estaria frontalmente ameaçada pelas transformações históricas ocorridas neste final de século. Como afirma Kuntz (1995), o suposto movimento histórico irreversível em direção a uma igualdade cada vez maior entre os homens, pressuposto na noção de cidadania, parece estar sendo negado pela experiência histórica da última década, quando reformas políticas adotadas em diversos países em nome da globalização têm levado à restrição crescente do universo da cidadania e dos direitos. Vejamos mais detalhadamente como a globalização pode implicar na erosão da cidadania e na crise da própria concepção que temos acerca da modernidade como era dos direitos.

Globalização e erosão da cidadania

A sociedade moderna, seguindo uma tradição de pensamento que tem suas origens no Iluminismo, tem sido freqüentemente definida como a era dos direitos e da cidadania. Já Kant, em seu célebre texto O que é Esclarecimento, publicado originalmente em 1783, identifica a época moderna como aquela que tornaria possível ao homem atingir finalmente a maioridade, ou seja, o homem poderia libertar-se da tutela da tradição ao fazer uso público e livre da razão (cf. Kant, 1987).

Kant sabia que não vivia ainda numa época plenamente esclarecida, mas acreditava que a modernidade abriria as possibilidades para que cada vez mais os homens usassem livremente a razão para guiar suas vidas. E, como afirma Piovesan (1995), esse ideal de liberdade em Kant implicará também num conceito de igualdade, já que todos teriam o direito – que deveria ser garantido pelo Estado – de exercer publicamente sua liberdade. Assim, e muito simplificadamente, podemos dizer que Kant, testemunhando em seu tempo a contestação dos regimes absolutistas e a reivindicação da soberania popular, formula a idéia de que a modernidade tornaria possível uma afirmação crescente da igualdade entre os indivíduos, embora esta estivesse restrita, neste momento, ao plano dos direitos civis, que hoje chamamos de primeira geração de direitos.

Evidentemente, como afirma Benevides (1994, p. 6), a idéia moderna de cidadania será marcada desde sua emergência por ambigüidades significativas, tanto em termos teóricos quanto práticos. Mas a expansão dos direitos políticos no século XIX e dos direitos sociais no início do século XX irá corroborar parte do otimismo de Kant em relação às possibilidades de ampliação da cidadania na modernidade. A própria idéia de gerações de direitos, freqüentemente utilizada a partir da segunda metade do século XX, se estruturá a partir de uma concepção praticamente evolutiva da cidadania, e a teorização de Marshall é a que provavelmente ganhou maior notoriedade e melhor exemplifica, no campo das Ciências Sociais, o credo otimista em face das possibilidade de ampliação da igualdade no mundo moderno.

Marshall, escrevendo em 1949, defende que existe uma clara tendência na sociedade moderna em direção a uma igualdade social cada vez mais ampla, tendência esta que historicamente se desdobraria em diferentes gerações de direitos: a primeira geração seria constituída pelos direitos civis, ou seja, aqueles necessários ao exercício da liberdade individual, construídos sobretudo ao longo do século XVIII; a segunda geração seria constituída pelos direitos políticos, que dizem respeito ao exercício do poder político, consolidados no século XIX; e a terceira geração de direitos, os direitos sociais, referentes ao bem-estar econômico e social, formulados já no século XX.

Assim, mesmo tendo atrás de si os horrores da Segunda Guerra Mundial, Marshall vê como inevitável o triunfo subseqüente da cidadania, o que implicaria numa regulação também irreversível da liberdade do mercado competitivo (cf. Marshall, 1967, p.63). Entretanto, como vimos, a grande questão colocada neste final de século pelo conjunto de transformações econômicas, sociais e políticas que denominamos globalização, diz respeito a se ainda podemos ou não ver com otimismo esse impulso crescente em direção à igualdade, supostamente inscrito na sociedade moderna. O próprio controle do mercado, que para Marshall parecia uma conquista definitiva da cidadania, se vê subitamente ameaçada pela globalização econômica: " (...) é como se o mercado, depois de mais de um século de sujeição a amarras de tipo institucional, se libertasse e voltasse a comandar o processo, com seu potencial de iniqüidade amplamente restaurado" (Kuntz, 1995, p. 154).

Ao levantar algumas da principais discussões atuais em torno dessa questão, podemos perceber que a maioria dos autores apontam três séries de acontecimentos principais que estariam levando à crise da cidadania.

A primeira diz respeito ao enfraquecimento crescente dos Estados nacionais diante do avanço da economia global. Como afirma Dowbor (1996), enquanto os instrumentos de política econômica dos Estados permanecem tendo apenas alcance nacional, as dinâmicas financeiras já são mundiais. As recentes crises econômicas ocorridas em diversos países devido à fuga de capitais especulativos, que são cada vez mais voláteis e se deslocam com extrema facilidade de um local para outro, ilustram bem este problema, ao mostrarem como a própria soberania dos Estados está ameaçada por uma economia mundial cada vez mais autônoma e desregulamentada.

Ora, esta erosão da soberania dos Estados nacionais pode levar também à conseqüente erosão da cidadania, já que historicamente as diferentes gerações de direitos foram reconhecidas e asseguradas no âmbito destes mesmos Estados. Enfraquecidas as instituições estatais de âmbito nacional voltadas para assegurar e promover os direitos civis, políticos e sociais, os valores da cidadania se vêem ameaçados pelos imperativos da economia globalizada e sua ênfase na produtividade, na competitividade e na livre circulação de capitais (cf. Faria, 1997).

A saída antevista por muitos analistas diante dessa erosão crescente da cidadania remete justamente à possibilidade de recompor a cidadania não mais no âmbito das nações, mas sim em âmbito mundial:

"(...) A globalização coloca, pois, um desafio; imaginar a política dentro de parâmetros universais e mundializados. Isso significa que o debate sobre a cidadania, realizado em termos tradicionais, se esgotou. É necessário ampliá-lo e percebermos o mundo como uma ‘sociedade civil mundial’." (Ortiz, 1997, p. 275)

Entretanto, essa sociedade civil mundial necessitaria de instituições políticas e jurídicas que funcionassem também em âmbito mundial, capazes de efetivar as demandas pela igualdade agora no plano global. Held (1994) propõe a constituição de uma federação de Estados e organismos democráticos que defenderia em âmbito global um núcleo de direitos básicos e que seria capaz de se impor aos interesses particulares dos Estados nacionais.

A proposta de Held, além dos problemas relativos ao como se daria a constituição dessa federação de Estados democráticos, já aponta para uma outra dimensão da crise da cidadania neste final de século: de que modo se poderia definir esse núcleo de direitos básicos a serem aplicados em todas as sociedades do planeta? Pois, paradoxalmente, numa sociedade cada vez mais globalizada, na qual finalmente se poderia vislumbrar a constituição uma cidadania planetária, imediatamente se coloca o problema do questionamento dos valores supostamente universais nela incorporados. Pois os valores clássicos da cidadania são criações do Ocidente, e nunca foram totalmente assimilados pela maioria dos países da América Latina, África e Ásia. O modelo de gerações de direitos de Marshall, por exemplo, dificilmente poderia ser utilizado para descrever a história brasileira, já que no Brasil "a cidadania permaneceu parcial, desequilibrada, excludente" (cf. Benevides, 1994, p.8) e apenas com a redemocratização dos anos 80 foi iniciado um movimento mais significativo de expansão da cidadania.

Assim, no momento em que supostamente a cidadania poderia se afirmar em todo o planeta, a questão que emerge é se os valores da igualdade nela formulados poderiam ser efetivamente implantados e aceitos por todas as sociedade e culturas. Santos (1997), ao discutir o problema da globalização dos assim chamados direitos humanos, aborda parte desse problema. Segundo este autor, os direitos humanos só poderiam se efetivar legitimamente numa sociedade global se enfrentassem o desafio do multiculturalismo, ou seja, se fossem definidos não mais como direitos abstratos e universais, de acordo com a tradição ocidental, mais sim redefinidos a partir dos valores locais das diversas culturas. Santos admite a dificuldade de tal proposta, já que o modo de concretizar essa redefinição teria de ser constituído historicamente para além do recurso falacioso da suposta afirmação de direitos supostamente universais.

Os dois desafios anteriormente citados – referentes à crise do Estado-nação e aos desafios do multiculturalismo – remetem a preocupações mais genéricas despertadas pelas transformações econômicas, sociais e culturais ocorridas na sociedade deste final de século. No entanto, as transformações mais recentes da economia mundial estão colocando um terceiro desafio no campo da cidadania, que atinge uma geração específica de direitos: os direitos sociais. Kuntz (1985) trabalha mais detalhadamente esta questão. Como bem lembra este autor, as transformações econômicas e políticas dos últimos 15 anos colocaram em xeque sobretudo o Estado keynesiano que construído ao longo do século XX viabilizou garantias de trabalho, de remuneração, de condições mínimas de segurança econômica e de oportunidade de acesso ao mercado para grande parte da população dos países mais industrializados. Justamente essa ação do Estado no sentido de promover uma justiça distributiva vêm sendo criticado pelos que defendem a necessidade de desregulamentação total da economia mundial. Assim, os direitos sociais tendem a ser limitados ou anulados, já que se constituíram sobretudo como mecanismos compensatórios, como formas de limitar as desigualdades produzidas pelo mercado (cf. Kuntz, 1985, p.152).

Como dissemos, enquanto as questões anteriores apontavam para desafios mais gerais e de longo prazo que podem ameaçar a expansão da cidadania, a desmontagem dos direitos sociais vêm sendo realizada nos últimos anos em várias países e com nítido apoio eleitoral, acarretando crescimento maciço dos índices de desemprego e aumentando, consequentemente, a desigualdade e a exclusão social.

Se juntarmos todos os desafios anteriormente citados, parece haver razão suficiente para afirmar que o assim chamado processo de globalização está colocando em xeque as promessas colocadas desde o início da modernidade em termos da expansão da cidadania e dos direitos. Restaria indagar, no entanto, se temos uma crise incontornável dos valores da igualdade ou se ainda podemos reafirmar, como defendem diversos autores, a cidadania em âmbito finalmente planetário.

Considerações finais: da cidadania à exclusão?

Fala-se com freqüência que com o avanço da globalização estaríamos caminhando no sentido da constituição de uma sociedade de excluídos. Entretanto, ocorre com o termo exclusão o mesmo processo de esvaziamento de sentido que citamos anteriormente com respeito ao termo globalização. Na verdade o termo exclusão tem sido utilizado principalmente como um instrumento ético e político de denúncia diante da crescente erosão da cidadania promovida pela assim chamada globalização, como afirma Oliveira (1997, p. 60). Em termos analíticos, o termo precisaria ser melhor definido de tal modo que as especificidades dos processos contemporâneos de exclusão pudessem ser melhor identificados, pois também a exclusão é multidimensional, podendo adquirir diferentes feições econômicas, políticas e culturais, com defende Nascimento (1997, p. 89-90).

Se é certo também que o processo de erosão da cidadania se agrava neste final de século, como vimos anteriormente, não é possível afirmar com a mesma certeza que estaríamos diante do esgotamento dos valores igualitários que emergiram com a modernidade. Pois, embora o otimismo iluminista com respeito à evolução da cidadania já não possa mais ser sustentado neste final de século, uma perspectiva puramente pessimista, que vê na globalização o fim da era dos direitos, apenas repetiria o antigo erro, agora com sinal trocada. Afinal, a história do século XX tem se mostrado muito mais complexa e imprevisível do que previam os modelos clássicos de análise da sociedade, desacreditando todos aqueles que se apegaram a qualquer tipo de filosofia da história. Seria mais prudente, portanto, seguir as considerações de Bobbio (1992), citadas no início deste artigo: os direitos nascem quando novos desafios são colocados para os homens e o mundo contemporâneo coloca o desafio da criação de uma cidadania global que possa fazer frente às novas formas globais de poder e de dominação e que possa concretizar, ao menos em parte, as promessas de igualdade social colocadas desde a emergência da modernidade.

Resta considerar que o debate que tentamos resumir aqui adquire ainda maior importância no Brasil, pois o país enfrenta os novos desafios da globalização sem nem mesmo ter viabilizado plenamente o acesso à cidadania clássica para o conjunto da população. A superação desse duplo desafio dependerá, sem dúvida, do aprofundamento das discussões acerca das transformações sociais globais presentes neste final de século.

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quinta-feira, 23 de setembro de 2010

REVOLUÇÃO FARROUPILHA

Jerri Almeida - Historiador e Professor

Aquela parecia ser uma noite como outra qualquer! No acampamento montado próximo à cidade de Piratini, na metade-sul da Província, local conhecido como cerro de porongos, soldados brancos, índios e negros, sob o comando do general David Canabarro, deveriam passar mais uma noite inglória de pesadelos e temores. Os negros haviam sido, suspeitamente, desarmados sob a alegação de que a guerra já estava em seus momentos finais. O comandante não preocupou-se, como de hábito em uma guerra, em deixar vigilantes estrategicamente posicionados para a proteção do acampamento. Era a madrugada de 14 de novembro de 1844. Um toque de corneta ordenou o início do ataque sobre o desprotegido acampamento. Mais de mil soldados imperiais, sob o comando do Coronel Francisco Pedro de Abreu, o Chico Pedro, também conhecido como “Moríngue” (apelido em alusão a sua cabeça, parecida com uma “moringa”.) atacam o acampamento republicano. O general farroupilha David Canabarro foge a cavalo, mas os combatentes negros, desarmados, são violentamente exterminados na sua totalidade. O que teria ocorrido em Cerro de Porongos? Como o inimigo conseguiu aproximar-se sem ser notado? Por que os negros haviam sido desarmados previamente? Para responder, essas e outras perguntas, é necessário revisitar o contexto da própria guerra dos farrapos, insurreição que entre 1835-1845 marcaria definitivamente a história do Rio Grande do Sul.
Após a Independência do Brasil (1822), criou-se um processo de centralização exacerbada do Poder Central do Rio de Janeiro sobre as demais Províncias brasileiras. A própria Constituição de 1824 criava um sistema de governo rígido e centralizador que se chocava com os interesses “mais liberais” das elites regionais. O próprio Presidente das Províncias, o que hoje corresponderia ao governador do estado, era designado pelo Poder Central, afastando, com isso, as elites locais do controle sobre o poder político direto em suas Províncias.
É nesse contexto de disputa entre as elites regionais, pela configuração do Estado Nacional brasileiro que melhor lhes favorecesse, que devemos situar a guerra de 1835 ocorrida na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. A Farroupilha, na verdade, foi uma das várias revoltas liberais republicanas ocorridas no Império. Sua base ideológica se fundamentava no federalismo e no liberalismo das classes pastoris na defesa de seus interesses econômicos e políticos de dominação sobre o Sul. A guerra é iniciada em 20 de setembro de 1835, com a invasão de Porto Alegre pelos rebeldes republicanos e a deposição do Presidente Braga.
O termo “farroupilha” já era um apelido antigo. Desde 1831 circulava no Rio de Janeiro, jornais denominados “Jurujuba dos Farroupilhas” e “Matraca dos Farroupilhas”. Em 1832, Luís José dos Reis, fundou o “Partido Farroupilha” em Porto Alegre, partido aliás que já existia em São Paulo. Os “farroupilhas” eram os liberais exaltados, radicais, facção revolucionária que defendia a separação do Rio Grande do Sul em relação ao Brasil.
Havia, como asseverou Padoin , uma divisão entre o movimento farroupilha, pelo menos, em dois grupos: o grupo da maioria e o da minoria. O grupo da maioria possuía como líder Bento Gonçalves da Silva, mas também, Domingos José de Almeida, Mariano de Matos e Antônio da Silva Netto e defendia a independência do Rio Grande do Sul num Estado republicano independente que poderia se vincular, numa espécie de federação, tanto ao Brasil como aos demais países platinos. O grupo da minoria, representado por David Canabarro e Vicente da Fontoura, desejava reformas para a autonomia da Província, fosse num sistema monárquico ou republicano sem, necessariamente, sua separação do Brasil. Esse grupo assumiu o controle da revolução já em seu final, a partir de 1843, negociando o processo de paz com o Império.
A guerra farroupilha, no entanto, estava longe de ser unanimidade entre os rio-grandenses. Essa guerra emergira da classe de estancieiros, principalmente da metade-sul, grandes proprietários de terras e gado, que controlavam a matéria-prima da importante indústria do charque. Por seus próprios objetivos, os farroupilhas (liberais radicais) não defendiam um projeto de reformas sociais para o Rio Grande do Sul. Pelo contrário, o ideário farrapo preconizava posturas racistas e excludentes. Exemplo disso é o próprio Projeto de Constituição proclamado pelos rebeldes, e impresso em Alegrete em 1843, onde afirmava-se: “São cidadãos Rio-Grandenses todos os homens livres nascidos no território da República...” , ou seja, nem o escravo, nem o liberto, nem o imigrante, eram considerados cidadãos. Mas a exclusão vai além, pois eram excluídos do direito de votar nas assembléias os que não tivessem de renda anual cem mil réis por bens de raiz, comércio ou emprego. O voto previsto era censitário, somente votaria ou se candidataria quem dispusesse de renda anual significativa. Somente poderia votar nas eleições de deputado, senadores e conselheiros do Estado quem tivesse renda anual de “trezentos mil réis”. Com isso o povo estaria, definitivamente, afastado das decisões e da vida política da Província.
Não havia no ideário farroupilha, efetivamente, um projeto inclusivo, social, que visasse atenuar o fosso das desigualdades e contradições em que vivia a sociedade rio-grandense em seus vários segmentos.
Se escravos e libertos não possuíam a condição de cidadania, como explicar que tais seguimentos participassem, arrolando-se ao exército farroupilha? Para poder manter seus contingentes de soldados, numa guerra que se prolongava, os farrapos passaram a recrutar os escravos, aos quais ofereciam liberdade em troca do serviço militar. Um dos maiores estudiosos da Revolução Farroupilha, o historiador Moacyr Flores, é categórico ao afirmar: “Em nenhum momento os republicanos libertaram seus escravos.” Muitos escravos aceitavam lutar na guerra na perspectiva de fugir, durante um combate, para o Uruguai, onde a escravidão já havia sido abolida. Entretanto, nem todos os trabalhadores escravizados aceitaram arriscar suas vidas, apesar da infame situação no cativeiro.
O recrutamento dos trabalhadores escravizados ocorreu entre negros campeiros, possivelmente entre outros, das Serras de Tapes e do Herval (Canguçu, Piratini, Caçapava, Encruzilhada, Arroio Grande.).
Muitos fazendeiros, na tentativa de se livrarem, bem como a seus filhos, do recrutamento, terminavam por liberar em seu lugar alguns negros para substituí-los. Numa guerra se mata e se morre e, ao que parece, muitos fazendeiros não tinham interesse em arriscar suas vidas nem a de seus filhos, numa guerra onde o foco era a defesa dos interesses de um grupo reduzido.
Quando os rebeldes farroupilhas invadiram Pelotas, em 1836, incorporaram em suas lides cerca de 400 escravos. O primeiro a defender a criação de um Corpo de Lanceiros Negros no exército farroupilha teria sido o major João Manuel de Lima e Silva, exatamente após a invasão de Pelotas . João Manuel veio para o Rio Grande do Sul, no início de 1830, como uma punição, por nutrir idéias republicanas. Era oriundo de uma família de militares fluminenses, tendo por irmão mais velho Francisco, pai de Luiz Alves de Lima e Silva, o futuro Duque de Caxias, que em 1842 viria para o Rio Grande do Sul, por ordem de D. Pedro II, para “pacificar” a Província.
Vinculando-se aos rebeldes republicanos rio-grandenses, João Manuel recebeu a patente de general no exército farroupilha. Após a formação do primeiro Corpo de Lanceiros, em 1836, o comando direto foi entregue ao Coronel Joaquim Pedro Soares, compadre do general Netto. Os lanceiros negros, eram assim denominados por carregarem uma lança de madeira de três metros de comprimento, atuando na “linha de frente”. Combatiam tanto a pé como a cavalo, fazendo, segundo o relato de Garibaldi, enorme gritaria.
Os lanceiros eram também habilidosos no uso da adaga e facão. Suas roupas eram simples: camisa e calça curta de algodão, um colete de couro protegendo o troco e sandálias de couro cru. Os detalhes do recrutamento são oferecidos pelo jornal oficial da república, O Povo, de 20 de abril de 1838, manifestando um decreto do Presidente Bento Gonçalves da Silva. Nele informa-se que os recrutas eram selecionados conforme a cor da pele, a instrução – pois os que sabiam ler e escrever eram destinados à artilharia – a educação e os bens. Os negros mais ágeis eram arrolados no Corpo de Lanceiros de primeira linha, a cavalaria, enquanto que os demais ingressavam na infantaria. O 2º. Corpo de Lanceiros foi formado em 31 de agosto de 1838 e contava com 426 combatentes. Nos dois corpos de lanceiros negros os oficiais eram brancos.
Na medida em que a guerra avançava, a importância dos lanceiros tornava-se mais evidente, como na ocupação a Rio Pardo em 1838, no ataque a Laguna, em 1839, e na invasão de Lages em 1840. Possuíam grande habilidade para atacar o inimigo de surpresa, sendo obrigados a desempenharem as ações mais arriscadas.
O que levou – diante da visível importância do negro no exército farroupilha – a sua traição na infame madrugada de 14 de novembro de 1844? A partir de 1840, com o governo de D. Pedro II, parece ter havido uma preocupação maior com os negros combatentes. O que fazer com esses combatentes quando a guerra chegasse ao seu final? Certamente, tal preocupação invadia também alguns líderes farroupilhas, pois existia a promessa de liberdade aos cativos que houvessem lutado ao seu lado. Todavia, o cumprimento dessa promessa não fazia parte de seus planos, o que deixava ainda um problema a resolver: caso os combatentes negros não ganhassem liberdade, haveria certamente uma onda de revoltas, por parte destes, que comprometeria o próprio sistema escravista num Rio Grande do Sul já profundamente debilitado com a guerra.
Após o fim da Balaiada, em 1841, o governo do Império voltou seu interesse para o extremo sul do Brasil, preocupando-se, agora, em por fim à longa guerra civil que permeava a Província sulina. Na prática, havia o interesse geopolítico na região do Prata e a preocupação com o crescente poder do caudilho argentino Rosas. Portanto, havia a urgente necessidade de apaziguar o Sul, mesmo porque, o Império sentia a necessidade de contar com o apoio dos chefes militares da Província, uma vez que o Rio Grande faz fronteira com a Argentina. A Província estava fortemente abalada economicamente, o exército farroupilha experimentava várias baixas, sobretudo a partir da chegada das forças imperiais comandadas por Caxias, em 1842. Havia, portanto, o interesse de ambas as partes em por fim à guerra.
A própria maçonaria, que havia ajudado Bento Gonçalves a fugir da Fortaleza do Mar, quando esteve preso na Bahia, agora atuava como uma mediadora nas negociações de paz. Houve várias tentativas de se chegar a um acordo com os rebeldes, mas – segundo Flores – batiam na intransigência de Bento Gonçalves que desejava a Federação e a manutenção da liberdade dos negros libertos que haviam lutado nas lides farroupilhas.
Entre 1840 e 1841, emissários de Bento Gonçalves, Manuel Alves da Silva Caldeira e José Pinheiro de Ulhoa, foram recebidos pelo Presidente da Província, Francisco Alves Machado, para tratarem as condições de paz. O grupo de Bento Gonçalves exigia, entre outras coisas, que todos os oficiais rebeldes devessem ser aceitos nos mesmos postos do exército imperial, a dívida pública da República fosse reconhecida pelo governo Central, os escravos que lutaram ao lado dos republicanos fossem considerados livres, as viúvas de oficiais recebessem uma pensão e os “rio-grandenses” indicassem os dois primeiros presidentes da província.
O ponto de divergência, no entanto, residia sobre o destino dos negros combatentes. Estes, deveriam ser entregues ao governo para o trabalho nas fazendas. E se seus proprietários, apresentassem documentos de posse dos escravos, receberiam a devida indenização. Afirmava-se que a idéia ampla de anistia não poderia contemplar os soldados negros pois não eram considerados cidadãos nem do Império e nem da extinta República Rio-Grandense.
Diante de seu posicionamento inflexível, Bento Gonçalves é afastado das negociações pelo barão de Caxias, que passou a se corresponder com o general David Canabarro. Para Flores, Caxias não tinha o poder de conceder liberdade aos soldados negros, pois: “...suas instruções limitavam-se à concessão de anistia, mediante pedido formal dos rebeldes.” O pedido foi formalizado pelo grupo de Canabarro que teve o cuidado de ocultar a concessão de anistia e a entrega dos soldados negros ao império.
É fato marcante a correspondência reservadíssima, enviada pelo barão de Caxias ao coronel Francisco Pedro de Abreu, comandante da 8ª. brigada do Exército Imperial, datada de 9 de novembro de 1844.

"Ilmo. Sr. Regule V. Sa. Suas marchas de maneira que no dia 14 às 2 horas da madrugada possa atacar a força ao mando de Canabarro, que estará nesse dia no cerro dos Porongos. (...) No conflito poupe o sangue brasileiro quanto puder, particularmente da gente branca da Província ou índios, pois bem sabe que essa pobre gente ainda nos pode ser útil no futuro. (...) Se Canabarro ou Lucas, que são os únicos que sabem de tudo, forem prisioneiros, deve dar-lhes escapula de maneira que ninguém possa nem levemente desconfiar, nem mesmo os outros que eles pedem que não sejam presos, pois V. Sa bem deve conhecer a gravidade deste secreto negócio que nos levará em poucos dias ao fim da revolta desta Província." [do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Vol. 7. CV. 3730.]

O saldo desse ataque foi a prisão de 280 homens de infantaria e 100 soldados negros massacrados, ou seja, a totalidade dos soldados negros presentes naquele acampamento. Conforme anotou Flores, em 4.2.1845, o barão de Caxias informava ao ministro da guerra, Jerônimo Francisco Coelho, que Canabarro havia prometido mandar entregar todos os escravos que ainda conservavam armas.
O próprio Bento Gonçalves criticou os acontecimentos de Porongos

"Foi com a maior dor que recebi a notícia da surpresa que sofreram o dia 14 deste! Quem tal coisa esperaria... por uma massa de infantaria cujos caminhos indispensáveis por onde tinha de avançar eram tão visíveis que só poderiam ser ignorados por quem não quisesse ver nem ouvir, ou por quem só quisesse ouvir a traidores talvez comprados por o inimigo... Perder batalhas é dos capitães, e ninguém pode estar livre disso; mas dirigir uma massa e prepará-la para sofrer uma surpresa semelhante é ser desfeita sem a menor resistência, é só dá incapacidade, e da inaptidão e covardia do homem que assim se conduz..." [Coletânea de documentos de Bento Gonçalves da Silva. 1835/1845. Porto Alegre, 1985. p. 256. In. ASSUMPÇÃO, Jorge Euzébio. Os Negros Farroupilhas e o Massacre de Porongos. Anais do I Simpósio Internacional do Litoral Norte sobre História e Cultura Negra. Osório: Facos, p. 117..]


Bento Gonçalves, entretanto, não foi o único que posicionou-se contrariamente à traição de Canabarro. Manuel Alves da Silva Caldeira, que havia sido sargento farroupilha em um dos Corpos de Lanceiros Negros, ainda vivo no final do século XIX, escreveu uma carta ao jornalista pelotense Alfredo Ferreira Rodrigues sustentando que Canabarro havia entregado os soldados negros para Moringue. Sua carta foi publicada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, em 1927. As denúncias de Caldeira reforçam a carta de Caxias a Chico Pedro: “...Canabarro, de combinação com Caxias e Moringue, deu entrada a Moringue em seu acampamento, para derrotar a força comandada pelo General Netto que estava acampada em lugar que ficou livre do ataque.” Para ele o acontecido na noite de 14/11/1844 havia sido programado: “Surpresa não, foi uma traição que Canabarro fez.” [Carta de Caldeira a Rodrigues. In. HASSE, Geraldo. KOLLING, Guilherme. Lanceiros Negros. Porto Alegre: Já Editores, 2005. p. 71-74..]
Caldeiras também enviou correspondência, em 1º. de dezembro de 1898, ao historiador Alfredo Varela:

"É com viva satisfação que lanço mão da minha grossa pena para saber notícias suas e agradecer-lhe o presente que me fez do Livro 1º. Da História da Revolução de 1835 escrita pelo Sr. Narrando os fatos conforme eles se deram. Araripe diz que Canabarro foi surpreendido nos Porongos. Assis Brasil, navegando nas águas do batel carregado de mentiras do Araripe, diz o mesmo, e o Sr. Alfredo Ferreira Rodrigues também segue a opinião deles, inocentando o Canabarro pela traição que fez em Porongos. Forjem os documentos que quiserem para defender Canabarro que não conseguirão salvá-lo. Junto remeto os apontamentos que pediu-me referentes à minha pessoa durante a revolução de 35." [Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Vol. 5. CV. 3102.]


A suposta dúvida sobre a autenticidade do documento em que Caxias acerta os detalhes do ataque a Porongos, com o Coronel Francisco Pedro de Abreu, parece não passar, na prática, de uma mera e natural desconfiança daqueles que se recusam, ou não desejam, dar visibilidade às contradições dessa guerra. Caldeiras, que havia servido na Guarda Nacional e depois no 1º. Corpo de Lanceiros até o final da guerra, afirma que Canabarro havia sido, inclusive, avisado sobre a presença de Francisco Pedro de Abreu nas imediações, sem – no entanto – demonstrar maior preocupação.
A guerra dos farrapos, finalizava, assim, um decênio inglório, permeado de conflitos internos ao próprio movimento rebelde, uma vez que a própria pacificação foi conquistada por um acordo infame, que distancia o movimento republicano de 1835 daquela representação mormente formatada pelo imaginário popular dos “grandes heróis”. Canabarro, apesar das diversas cartas de Domingos José de Almeida, lhe exigindo uma posição sobre o ocorrido, jamais se posicionou, afirmando que esperaria uma resposta de Caxias.
Os soldados negros que sobreviveram, foram aprisionados pelo Império e seguiram para o Rio de Janeiro. Porongos, durante muito tempo, permaneceu um assunto intocado, pois, na verdade, tratava-se de remexer num fato que expunha as vísceras cruéis não somente de dois vultosos personagens da história oficial (Canabarro e Caxias), mas também porque o desvelamento do episódio de Porongos ensejaria toda uma revisão do sentido histórico da Revolução Farroupilha.

BIBLIOGRAFIA


ALMEIDA, Jerri Roberto Santos de. Heróis de Papel: As representações sobre a Revolução Farroupilha na Literatura. Porto Alegre: Alcance, 2007. p. 79.

Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Vol. 7. CV. 3730/ Vol. 5. CV. 3102.

FLORES, Moacyr. Negros na Revolução Farroupilha. Traição em Porongos e Farsa em Ponche Verde. Porto Alegre: EST, 2004. p. 56-57.

FLORES, Moacyr. A Revolução Farroupilha. 3ª. ed. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1998, P. 22-25.

LEITMAN, Spencer L. Negros Farrapos: hipocrisia racial no sul do Brasil no séc. XIX. In. DACANAL, José Hildebrando. (Org.) A Revolução Farroupilha: História & Interpretação. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985. p. 64.

HASSE, Geraldo. KOLLING, Guilherme. Lanceiros Negros. Porto Alegre: Já Editores, 2005. p. 45.

PADOIN, Maria Medianeira. A Revolução Farroupilha. In. PICCOLO, Helga L. Landgraf. PADOIN, Maria Medianeira Padoin (Direção) História Geral do Rio Grande do Sul. Vol. 2 – IMPÉRIO. Passo Fundo: Méritos, 2006. p. 39-70.

Projeto de Constituição da República Rio-Grandense. Título 2, Art. 6º.
Idem. Capítulo 7º. Art. 92/93.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

À SOBRA DO GOLPE - A DITADURA MILITAR NO BRASIL E O ANOS REBELDES

Jerri Almeida
Historiador. Especialista em Diálogos entre História e Literatura do RS.

A vexatória renúncia de Jânio Quadros à presidência da república, em agosto de 1961, instaura a denominada “crise da legalidade”, um período turbulento e delicado pela não aceitação das forças armadas à assunção do vice-presidente, João Goulart (Jango), ao poder. Os desdobramentos desse fato colocariam em xeque a incipiente e frágil democracia brasileira, culminando em 31 de março de 1964 com o golpe que implantou, por vinte e um anos, a ditadura militar no Brasil.
Jango, um homem enigmático, herdeiro do trabalhismo de Getúlio Vargas, desde fins de 1961, defendia a necessidade das “reformas de base” que atingiria a questão agrária, a universidade, a área tributária e eleitoral. O projeto de Jango sofreu forte resistência dos setores conservadores da sociedade, sendo – por fim – derrotado no Congresso. Se por um lado, havia por parte desses setores elitistas uma forte resistência à tradição do Estado Populista, personificado agora na figura de Jango, por outro, vários setores mobilizavam-se, como é o caso das Ligas Camponesas e da UNE (União Nacional dos Estudantes) visando imprimir, radicalmente, essas reformas no campo e na cidade.
Em época de Guerra Fria, sob o impacto ainda recente da Revolução Cubana (1959), a elite brasileira via com temeridade o “fantasma do comunismo” que rondava o Brasil sob a égide das políticas sociais de João Goulart. Nesse contexto, as Forças Armadas estavam divididas em dois grupos: os que defendiam como necessárias as transformações na sociedade brasileira, e os que se opunham radicalmente ao governo Jango, acusando-o de ligações com o comunismo. O clima se acirrou, ainda mais, com o grande comício da Central do Brasil, em 13 março de 1964, no antigo Estado da Guanabara, quando, diante de uma imensa concentração de 150 mil pessoas, Goulart anunciou uma série de medidas radicais como a reforma agrária e a nacionalização das refinarias de petróleo, o que significava uma atitude que passava por cima do Congresso, explorando-se os poderes do executivo.
Entretanto, no caso de protesto do Congresso, Jango tencionava recorrer, novamente, ao “plebiscito” para demonstrar o apoio popular para suas reformas. Essa nova fase de Jango, inegavelmente, iniciou com o comício da sexta-feira 13 de março. Em seu discurso, o presidente enfatizou a necessidade da reforma agrária e de uma nova Constituição que melhorasse a ordem sócio-econômica do Brasil. Todavia, Jango jamais organizara realmente uma base de apoio popular consistente para as reformas almejadas. Para o historiador Thomas Skidmore, a aproximação de Goulart da esquerda radical, da qual fazia parte Brizola, fez com que ele perdesse o apoio dos militares.
Aquilo que para os setores de esquerda radical, era um governo democrático, que pretendia mexer na política fundiária e diminuir o fosso das desigualdades sociais da sociedade brasileira, era, para os conservadores, proprietário de terras, políticos direitistas, Igreja Católica, etc, o prenúncio da “desordem comunista” que deveria ser barrada. A reação inicial desses setores conservadores foi a realização em São Paulo, em 19 de março de 1964, da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. Defendia-se o anticomunismo, a moral e a família. Governadores como Adhemar de Barros (SP) e Carlos Lacerda (GB) chegaram, inclusive, apoiar abertamente a rebelião contra o Governo Federal.
O 13 de março solidificou a oposição a Jango. As forças políticas do Centro migraram para a Direita Radical, fortalecendo-se o discurso de que o Presidente havia rejeitado a democracia. A oficialidade militar passou a olhar para Jango como um “subversivo” e, logo, caíram no ataque. De alguma forma revivia-se o ano de 1954 quando Getulio era forçado a abandonar o poder, fato que culminou em seu suicídio.
Preparava-se, sob o comando do General Castelo Branco, o golpe, não contra Jango, mas contra a incipiente democracia brasileira.
Um conjunto de articulações, no interior das Forças Armadas, tomou vulto em 20 de março de 64. Um grupo mais intelectualizado, de oficiais, sob o comando do General Castelo Branco, preparava-se para o golpe sob o pretexto de que o papel histórico das Forças Armadas era o de defender a ordem constitucional do país. Com o apoio do Governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, o general Olympio Mourão Filho pôs suas tropas a marcharem para o Rio de Janeiro, detonando, assim, o golpe militar contra o governo João Goulart, em 31 de março de 1964.
Praticamente, a única iniciativa de resistência contra o golpe veio de Leonel Brizola, do PTB do Rio Grande do Sul. Todavia, Jango, que, para alguns historiadores, era portador de uma personalidade conciliatória, encarou com realismo a deposição, o que gerou, sabidamente, uma indisposição com seu cunhado, pois Brizola o estimulava a resistir na defesa de seu mandato.
A movimentação das tropas deslocou-se de Minas Gerais e São Paulo em direção ao Rio de Janeiro o qual era sede do 1º. Exército, do qual se esperava uma possível reação na defesa de João Goulart. O General Âncora, comandante do 1º. Exército ao telefonar para o palácio presidencial em busca de instruções, soube que o presidente havia se evadido rumo a Porto Alegre, deixando o recado de que não desejava, sob nenhuma hipótese, o choque entre militares.
Ao chegar em Porto Alegre, Jango ainda ouviu o apelo desesperado de Brizola, informando que o General Ladário Teles, comandante do 3º. Exército, estava ao seu lado oferecendo resistência, muito embora, o próprio governador do Rio Grande do Sul, Ildo Meneghetti, que temia a guerra civil, já ter fugido para o interior do Estado. Brizola chegou a chorar para que seu cunhado resistisse, mas foi em vão. Jango também fugiu para o interior do RS, e depois exilou-se no Uruguai, seguido, logo depois, por Brizola.
O golpe de 64 negou ao povo brasileiro o direito de amadurecer a sua experiência democrática, essencial para o aperfeiçoamento das instituições e dos poderes, além de bloquear, por 21 anos, a construção de um país com mais justiça social. Não era a primeira vez que as forças armadas intervinham para obstaculizar os conflitos da política brasileira. Em 1954 algumas ações já haviam sido feitas. Mas em 1964, pela primeira vez, o exército estava unido contra o populismo, o qual: “pretendia perturbar a democracia brasileira.”
A esquerda brasileira, na órbita de seu radicalismo, ficou perplexa, e perdida, diante do golpe. É bom que se diga que João Goulart foi deposto por uma revolta militar e não por uma elite política oposicionista. O próprio Congresso Nacional não havia endossado nenhum pedido de impeachment, pois sabiam não haver votos suficientes. Seja como for, o Brasil, a partir da implementação do regime ditatorial, mergulhou numa infame névoa que obscureceu, sistematicamente, a liberdade de expressão e de participação política da população. Mais, os governos que se iniciavam souberam destroçar completamente o sistema político formado durante o período democrático.
A poderosa máquina repressiva, instalada, principalmente, a partir da decretação do Ato Institucional no. 5, fez com que o “combate à subversão” justificasse a total liberdade de ação de órgãos policiais que espalhavam terror sobre a sociedade, prendendo, torturando e assassinando supostos comunistas. As mortes, nos porões do DOI-CODI, eram encobertas por versões falsas de “atropelamento” ou “morte por acidente de trabalho”.
A arbitrariedade do poder, pelo governo ditatorial, se fez presente na censura aos meios de comunicação, nos festivais de música, no teatro, nas escolas e nos cinemas. Sem condições de produzir, uma significativa parcela de artistas e intelectuais brasileiros viram-se constrangidos ao exílio. Era a fase do: “Brasil: ame-o, ou deixe-o”. Na verdade, “amar o Brasil” era aceitar as arbitrariedades do próprio regime.
O golpe de 31 de março de 1964 castrou, e por isso deve ser periodicamente relembrado, o valor inalienável da democracia e da participação efetiva das pessoas na vida de seu país.
Chegando ao poder, os militares realizaram profunda alteração constitucional, promulgaram o Ato Institucional nº 1 — que cassou mandatos, suspendeu a imunidade parlamentar e direitos políticos — e promoveram a eleição, pelo Congresso Nacional, de um novo presidente, o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, que governou até 1967. Os partidos políticos foram abolidos e instalado o bipartidarismo.
No campo econômico foi definido um modelo baseado no binômio desenvolvimento/segurança. O planejamento centralizado contribuiu para a estatização da economia, desempenhando o Estado atividades de gerenciamento da produção. Como ocorreu em outros países, a crise mundial da década de 1970 agravou o problema econômico brasileiro, acentuando a concentração de renda e os problemas das populações mais pobres.
Ato Institucional nº 5 ou AI-5, decreto governamental de 13 de dezembro de 1968, assinado pelo presidente Artur da Costa e Silva, suspendendo garantias constitucionais e fortalecendo a repressão aos que se opunham ao Movimento Militar de 1964:
Através desse Ato, o presidente podia:
a) fechar o Congresso Nacional por tempo indeterminado toda vez que deputados e senadores “atrapalhassem”, com suas críticas e votações, os projetos do Governo militar;
b) suspender direitos políticos. Se um deputado ou senador fizesse “oposição exagerada”, o presidente poderia “cassa-lo”;
c) Suspender direitos legais. A partir do AI-5, tornou-se comum a polícia invadir a casa das pessoas sem autorização judicial. O preso político era levado a um local desconhecido e não podia se comunicar com seus familiares..
O recrudescimento do movimento estudantil contra o governo, bem como o início de atividades terroristas, em 1968, foram invocados como motivos para colocar em recesso o Congresso Nacional, as Assembléias Legislativas e as Câmaras Municipais, e realizar novas cassações de mandatos e direitos políticos, além de aposentar funcionários públicos, sobretudo professores universitários, tidos como contrários ao regime, atingindo, entre outros, o ex-governador Carlos Lacerda. Concedeu ao presidente poder para governar por meio de decretos e estabeleceu a censura.
A tortura foi indiscriminadamente aplicada no Brasil. Pessoas suspeitas de serem “subversivas ao sistema”, isto é, de estarem contra o governo militar, eram torturadas pelos órgãos de repressão criados pela ditadura. No caso da tortura, não se tratava apenas de produzir, no corpo da vítima, uma dor que a fizesse confessar possíveis “planos” contra o regime. A tortura também possuía um componente emocional, assim crianças eram torturadas diante de seus pais, mulheres diante do marido, marido na frente da esposa, etc. Muitos morreram ou estão desaparecidos até hoje.
O ato vigorou até 1979, quando foi revogado no processo de abertura política impulsionada no governo de Ernesto Geisel.
O fim da ditadura militar no Brasil pode ser explicado através de vários motivos. Entre eles, podemos citar:
a) a grave crise econômica do país, fruto dos enormes gastos com a construção de obras faraônicas como a ponte Rio-Niterói e a rodovia Transsamazônica. A crise do petróleo nos anos 70 colaborou para o agravamento dessa crise. A inflação aumentado e a política econômica do ministro Delfim Neto não lograram reverter a situação complexa do país.
b) o conflito entre as forças internas do próprio regime militar. Os órgãos criados para reprimir, prender e torturar os “inimigos políticos do sistema”, com o tempo, passaram a gozar de muitos poderes, criando por conta própria uma autonomia muito grande em relação ao governo. Não foram poucos os conflitos entre delegados do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) e o comando do exército pela captura dos mencionados inimigos políticos. Tal crise se agravou ainda mais quando passou a existir o chamado “esquadrão da morte”, formado por policiais civis que partiram para o extermínio de “bandidos”.
c) as pressões dos trabalhadores. A crise econômica por que passava o país fez aumentar o número de desemprego e o arrocho (perda) salarial. Na região do A,B,C paulista, região de grande concentração de indústrias metalúrgicas, os sindicados passaram a organizar grandes manifestações e greves por melhores condições de trabalho e de valorização salarial.
Diante de um quadro cercado de crises, os militares resolvem de forma “lenta e gradual” devolver o poder político do Brasil à sociedade civil.

Anos 60: os anos rebeldes

A conjuntura política dos anos 60 deu novo rumo a cultura de massas. Os militares que se estabeleceram no poder passaram a praticar a censura aos meios de comunicação, pois temiam que a influência do rádio e da televisão sobre a cultura popular pudesse ameaçar a "Segurança Nacional". Órgãos de controle dos meios de comunicação foram instalados nas rádios, jornais, revistas e redes de televisão para cuidar das informações e das notícias que seriam passadas para a população brasileira. Era a censura.
Nos outros meios de difusão cultural não foi diferente. Teatro, música, cinema também foram alvos da ditadura militar. Artistas, compositores, autores de peças teatrais foram perseguidos pelos órgãos de censura.
A produção de cultura passava pela arrogância dos militares que viam em tudo uma ameaça comunista. Por trás de uma letra de música, de um diálogo numa peça teatral ou num filme escondia-se o "perigo vermelho". De fato a rebeldia da juventude, dos intelectuais e artistas brasileiros engajados na luta contra a ditadura dava motivos para os órgãos de repressão agirem contra os meios de comunicação e de produção culturais. Esses meios, aliás, tornaram-se instrumentos da propaganda do regime militar.
Mas, mesmo assim, a arte conseguia encontrar brechas nos muros erguidos pela ditadura e, até, confrontar-se com ela. No cenário artístico-cultural duas alternativas se apresentaram: o protesto contra o regime e as denúncias e críticas aos hábitos da sociedade brasileira.
No teatro, por exemplo, o grupo Opinião em 1965 montou a peça Liberdade Liberdade. Em 1966 Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. O Teatro de Arena encenava Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes. O TUCA (teatros universitários) também montava peças de protesto.
Na música Geraldo Vandré, Edu Lobo, Chico Buarque compunham letras de protesto contra o regime militar. De outro lado surgia a Jovem Guarda, com músicas que falavam de beijos, amor, sexo, numa linha de rebeldia contra costumes da época. No final dos anos 60 aparecia o Tropicalismo uma tendência artística que busca uma nova linguagem, criticando valores estabelecidos, concebendo a melodia e as letras de uma maneira diferente da Jovem Guardam, da música de protesto, da bossa nova, embora incorporasse elementos destes e de outros estilos e influências (Jimmy Hendrix, Beatles). Chegou a atingir cinema e teatro, não se limitando à música. Foram destaques da tropicália - Caetano Veloso, Gilberto Gil, os Mutantes, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade em sua peça Macunaíma.
Tivemos também expressões da contracultura aqui no Brasil nos idos anos 60. No cinema, na literatura, no jornalismo alternativo buscava-se enfocar o homossexualismo, as minorias, as drogas, etc. Também conhecido como pós-tropicalismo teve seus destaques em nomes como Torquato Neto, Waly Sailormoon, em jornais como o Pasquim, Bondinho e Flor do Mal.
Os anos 60 significaram muito em nossa história. Primeiro pela própria ditadura militar que através da repressão, dos inúmeros atos de tortura, da censura, da propaganda acabou marcando as gerações que vivenciaram o terror daqueles anos. A juventude, principalmente, reagiu ou se conformou aos atos autoritários. A imaginação e a criatividade não foram caladas pelos instrumentos de repressão, mas muitos morreram pelas causas que defenderam. Os menos famosos, os desaparecidos políticos, os prisioneiros, aqueles que foram torturados, compõem uma legião que permanece até hoje no anonimato. É uma parcela de nossa história que não se apagará facilmente. As heranças desse passado recente com as intensas transformações estão ainda vivas no Brasil do início do século XXI.

Referências Bibliográficas

BARROS, Edgar Luiz de. O Brasil de 1945 a 1964. São Paulo: Contexto, 1994.
BRANDÃO, Antonio Carlos. DUARTE, Milton Fernandes. Movimentos culturais de juventude. 2ª. Ed. São Paulo: Moderna, 2004.
HABERT, Nadine. A Década de 70: Apogeu e crise da ditadura militar brasileira. São Paulo: Ática, 2003.
NAPOLITANO, Marcos. O regime militar brasileiro: 1964-1985. 4ª. Ed. São Paulo: Atual, 1998.
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo (1030-1964). 9ª. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

ERA VARGAS E O GOVERNO "JK"

A ERA VARGAS (1930 – 1945)

Em 1930 o gaúcho Getúlio Vargas assume a presidência do Brasil através de uma revolução armada. Ele deveria ficar provisoriamente no cargo de presidente, mas terminou permanecendo no poder por 15 anos consecutivos.
O governo de Getúlio realizou eleições para uma Assembléia Nacional Constituinte, cujos trabalhos resultaram, em 1934, em uma nova Constituição para o Brasil. A Constituição de 1934 estabelecia voto secreto, voto feminino e a redução da idade mínima do eleitor de 21 para 18 anos. Reconhecia a responsabilidade do Estado pela educação, em todos os níveis. Incorporava também as leis trabalhistas decretadas ainda no governo provisório, como jornada de trabalho de 8 horas, descanso semanal, proibição do trabalho para menores de 14 anos, férias anuais, indenização aos demitidos sem justa causa, estabilidade à gestante, instituição da previdência social, reconhecimento dos sindicatos.
Alegando que o Brasil estava sob risco de um golpe comunista, Getúlio Vargas, com o apoio das forças armadas, no final de 1937, deu um novo “golpe” onde mandou fechar o Congresso e impôs ao Brasil um governo autoritário e ditatorial conhecido por “Estado Novo”. Nesse novo governo de Vargas, foram fechados os partidos políticos. O Estado centralizador e autoritário tomava todas as decisões: planejava a economia, intervinha na produção, controlava os trabalhadores, fixava os currículos escolares etc.
O Departamento de Imprensa e Propaganda, cuidava da censura prévia à imprensa, ao rádio, ao teatro e ao cinema. Cabia-lhe também produzir o noticiário para a “Hora do Brasil”, fazer a propaganda do regime e de seu chefe e organizar grandes eventos oficiais de massa como comícios, desfiles e comemorações, como o Dia do Presidente, etc.
O Estado Novo reordenou a economia do país, com o objetivo de diminuir a dependência das importações e de promover a diversificação da produção agrícola. Para estimular a industrialização, o governo ofereceu incentivos aos empresários e facilitou empréstimos. Mas a intervenção do Estado foi mais forte na criação de indústrias de base, destinadas à produção de bens de capital. Entre 1940 e 1945, foram criadas a Companhia Siderúrgica Nacional (Usina de Volta Redonda), a Companhia Vale do Rio Doce, a Fábrica Nacional de Motores, etc.
A industrialização do Brasil era parte do projeto nacionalista de Getúlio. Com isso, procurava-se aumentar a auto-suficiencia do país e garantir a defesa de seus recursos naturais e humanos. Era importante, também, conquistar a participação da massa de trabalhadores na tarefa de implantar a industrialização. O Estado Novo apelava à “colaboração entre as classes”, difundindo idéias de exaltação ao trabalho. Getúlio Vargas era apresentado como “pai dos trabalhadores”, aquele que concedeu as tão desejadas leis trabalhistas. Além disso, o governo proibiu as greves e estabeleceu um controle mais rígido sobre os sindicatos. Tais medidas mantinham a classe trabalhadora sob o controle do governo, o que favorecia a classe empresarial e mascarava as desigualdades sociais e os baixos salários. Observe com atenção as letras das músicas abaixo:

Eu trabalho
Hoje eu tenho tudo, tudo que um homem quer
Tenho dinheiro, automóvel e uma mulher
Mas para chegar até o ponto que cheguei
Eu trabalhei, trabalhei, trabalhei
Eu hoje sou feliz
E posso aconselhar
Quem faz o que eu já fiz
Só pode melhorar

A ligação do Brasil com a Alemanha nazista inquietou os Estados Unidos, interessados nas matérias-primas e no mercado consumidor brasileiro. Para afastar a concorrência alemã o presidente americano Franklin Roosevelt pôs em prática sua política de “boa vizinhança”. Defendendo a cooperação entre os países americanos, ofereceu empréstimos e se dispôs a aumentar as importações de produtos latino-americanos. Foi nesse contexto que o Brasil obteve 20 milhões de dólares para construir a usina siderúrgica de Volta Redonda. Paralelamente, o governo americano procurou cativar o mercado brasileiro, divulgando as “maravilhas” do modo de vida americano por meio do rádio, do cinema, das revistas e do incentivo ao consumo.
O Brasil começava a se americanizar. Para promover a “boa vizinhança”, Walt Disney criou o papagaio Zé Carioca, personagem lançado no filme Alô, amigos. Em contrapartida, a cantora Carmen Miranda tornou-se estrela de Hollywood, divulgando nos Estados Unidos o samba brasileiro. A entrada do Brasil na guerra, em 1942, fortaleceu as relações com os Estados Unidos. Contudo, lutar com os Aliados era contraditório, pois defendia-se a democracia lá fora, mantendo-se a ditadura aqui dentro. À medida que se festejavam as vitórias dos Aliados, aumentavam as críticas ao Estado Novo. No início de 1945, Getúlio Vargas, cedendo às pressões, começou a abrir o regime: marcou eleições, legalizou a formação de partidos políticos, decretou anistia aos presos políticos e extinguiu o DIP (Órgão de censura). O prestígio de Vargas junto ao povo era tão grande que ganhou força um movimento popular por sua permanência no poder, sob o lema “Queremos Getúlio”. Desconfiados, alguns políticos e chefes militares agiram rápido e, no dia 29 de outubro, retiraram Vargas da presidência do Brasil.


O GOVERNO JUSCELINO (1956-1961)


O lema do governo Juscelino era fazer o Brasil progredir 50 anos em 5. O lema traduz bem o espírito dinâmico e empreendedor do novo presidente. Sua administração estava baseada no Plano de Metas, um programa com 31 objetivos de governo, dentre os quais destacam-se: a construção de usinas hidrelétricas; implantação de indústria automobilísticas, que produziria mais de 300 mil veículos por ano, com 90% das peças fabricadas no Brasil; a ampliação da produção de petróleo, que saltaria de 2 milhões para 5,4 milhões de barris por ano e, finalmente, a construção de estradas, com a abertura de 20 mil quilômetros de rodovias, dentre elas a Belém-Brasília.
Além de todas essas obras, Juscelino foi responsável pela fundação da cidade de Brasília, destinada a ser a capital do Brasil. Depois de três anos de obras, Brasília foi inaugurada, em 21 de abril de 1960. Milhares de trabalhadores pioneiros, esforçaram-se noite e dia para concluir a obra ainda no governo Juscelino.
O grande número de obras realizadas pelo governo Juscelino fez-se à custa de empréstimos e investimentos estrangeiros. Quer dizer, o governo internacionalizou a economia e aumentou a divida externa brasileira. Permitiu que grandes empresas multinacionais instalassem suas filiais no pais e controlassem importantes setores industriais como eletrodomésticos, automóveis, tratores, produtos químicos e farmacêuticos, cigarros, etc. Por isso, os nacionalistas diziam que a política econômica de Juscelino tinha a vantagem de ser modernizadora, mas o defeito de ser desnacionalizadora.
Os gastos com as grande obras públicas ajudaram a elevar a inflação, prejudicando a classe trabalhadora que reclamava aumentos salariais. Atraídos pelo desenvolvimento industrial, que se concentrava em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, milhões de brasileiros do campo continuavam a vir para as cidades. Queriam um melhor emprego na indústria. Sonhavam com uma vida mais digna e justa. No entanto, a maioria se decepcionava quando chegava às cidades. Trocavam a miséria do campo pela exploração das cidades.
Na tentativa de desenvolver a região nordestina, Juscelino criou a SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste). Ao longo dos anos, pouco resultado significativo se alcançou para transformar o Nordeste em região desenvolvida.
Juscelino realizou um governo marcado pela garantia das liberdades democráticas. As diversas correntes políticas manifestavam suas idéias, menos o Partido Comunista, que foi mantido na ilegalidade. Agindo com habilidade, Juscelino procurava evitar os exageros dos radicais de esquerda (comunistas) ou de direita (udenistas). Durante seu governo não houve cidadãos presos por motivos políticos.
Nesse ambiente de democracia, ao final de seu mandato Juscelino fez realizar eleições libres e entregou o poder ao presidente vitorioso, eleito pela oposição. Era Jânio Quadros.

Professor Jerri Almeida

terça-feira, 4 de maio de 2010

NAVEGAÇÕES


domingo, 21 de março de 2010

O MAL E SUAS RAÍZES Na Colônia, a busca por privilégios e distinção social criou uma nova “nobreza”. Era a origem da nossa desigualdade Ronald Ramine

No final de 2001, a Câmara dos Deputados e o Senado aprovaram uma emenda para alterar a redação do artigo 53 da Constituição Federal. Depois de intermináveis debates, ficava garantido ao Supremo Tribunal Federal o poder de processar os parlamentares por crime comum, sem necessidade de licença concedida pelo Congresso.

Na época, a emenda foi considerada uma grande vitória contra a impunidade. Com o passar do tempo, porém, o entusiasmo acabou. Basta abrir os jornais para se ver que essa mudança na lei pouco coibiu os desvios perpetrados por parlamentares. Recorrendo a artimanhas legais, eles conseguem prolongar a tramitação dos processos em que são acusados ou neutralizar as sentenças que os condenam.

E a impunidade não é privilégio dos políticos. A sociedade já se acostumou a ver como os ricos e famosos conseguem viver imunes aos “rigores” da Justiça. Será que nossa História ajuda a entender como se construiu e consolidou esta situação?

Em um rápido mergulho no passado, fica evidente a instável hierarquia da sociedade luso-brasileira, numa acirrada busca por privilégios individuais que emperrava a luta em favor do coletivo. O “jeitinho brasileiro” e o hábito de “levar vantagem” não são invenções recentes – provêm da sociedade colonial.

Nada mais estranho ao Brasil Colônia, por exemplo, do que a idéia de democracia. Por mais de três séculos vivemos em uma sociedade comandada por militares e religiosos, acrescidos posteriormente de mineiros e mercadores.

Em princípio, os privilégios e as imunidades eram graças concedidas pelo rei aos seus principais aliados. Essa honra era destinada a poucos. Basicamente, aos nobres e fidalgos. Em Portugal, os fidalgos descendiam de homens leais ao rei – guerreiros que lutaram contra os mouros, ao sul, e contra os castelhanos, a leste, para expandir as fronteiras e consolidar o poder da monarquia. Esse grupo seleto recebia títulos honoríficos de duque, marquês, conde ou barão, e desfrutava dos principais cargos, além de foro jurídico privilegiado, isenção fiscal e polpudas rendas concedidas pelo monarca.

Ao contrário dos fidalgos, os nobres não contavam com antepassados ilustres para garantir seus privilégios. Para alcançar a nobreza, os súditos recorriam basicamente a duas estratégias. A primeira era tornar-se um valente guerreiro, reconhecido como tal pelo rei, para receber o foro de fidalgo ou o título de cavaleiro de uma Ordem Militar. A segunda era ingressar na Universidade de Coimbra e receber o título de bacharel em leis ou em cânones, como fizeram, por exemplo, José Bonifácio e Hipólito da Costa. Com essa formação, eles pleiteavam um posto na magistratura e tornavam-se parte da nobreza política do reino, condecorados com as benesses da monarquia.

Tanto fidalgos quanto nobres recebiam pensões e o direito a foro privilegiado caso se envolvessem em causas criminais e cíveis. Se cometessem um assassinato, por exemplo, não seriam julgados pela justiça comum, mas por seus pares.

Em terras tupiniquins, os estratos sociais tornaram-se menos rígidos, viabilizando a ascensão de indivíduos que no reino jamais alcançariam altos patamares. Portugueses conviviam com índios e negros, escravos ou forros. Mais tarde, sobretudo no século XVIII, essa composição social ficou ainda mais complexa com o surgimento dos mestiços, filhos da união entre índios, negros e portugueses.

Nem sempre os primeiros colonizadores dispunham de prestígio para receber um título de cavaleiro ou foro de fidalgo e suas respectivas imunidades e seus privilégios. Eles estavam impedidos pelo defeito de sangue ou defeito mecânico. Em Portugal e em suas possessões ultramarinas, o rei não podia conceder privilégios aos súditos de origem judaica, moura ou gentílica (negros, ameríndios e asiáticos). Mesmo demonstrando lealdade ao monarca, as “raças infectas” eram impedidas de receber as mesmas honras dos brancos católicos. Desde o século XVI, era comum o casamento entre portugueses e índias, ou entre portugueses e negras. Além da mestiçagem racial, para a Colônia vieram muitos cristãos-novos (indivíduos de origem judaica convertidos ao catolicismo), que se misturaram aos cristãos-velhos. Em princípio, todos eles estavam impossibilitados de receber benesses da monarquia devido ao sangue impuro.

Além dos impedimentos de sangue, os súditos deveriam comprovar que seus pais e avós não trabalhavam com as mãos nem exerciam ofícios mecânicos (sapateiro, latoeiro, marceneiro, etc.). Para tanto, realizavam-se investigações (as chamadas provanças) na terra natal do indivíduo que concorria a privilégios e imunidades.

No Brasil, somente uma parte minoritária dos colonos não tinha “defeito” de sangue nem “de mãos”. Com o passar do tempo, porém, formou-se uma nova elite que, mesmo sem as benesses da monarquia, acumulou riquezas e tornou-se poderosíssima: dispunha de terras, engenhos, plantações e até mesmo de exércitos particulares.

Aos poucos, o grupo se integrou à chamada “nobreza da terra”. Assim se definiam os membros da elite de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, formada por um grupo beneficiado pela monarquia e por outro que se tornou poderoso mesmo sem contar com o aval do rei. Ainda que o último não fosse oficialmente reconhecido como nobre, isso não impedia seus membros de negociar postos e benefícios com Lisboa. Os “nobres da terra” ocupavam posições de destaque nas câmaras municipais e cargos militares, controlavam as alfândegas, os recursos e o patrimônio administrado pelas Santas Casas da Misericórdia.

Esse processo era facilitado pela grande distância que separava Lisboa e as capitanias da América portuguesa. O controle do rei sobre esses potentados era atenuado. Nas capitanias mais periféricas, onde a nobreza política era uma raridade, a “nobreza da terra” tinha amplo controle sobre a população, composta de uma minoria de brancos e uma maioria de mestiços, índios, pretos alforriados e escravos.

Longe de ser uma ameaça para a autoridade da metrópole, o poder local desses capitães era indispensável à manutenção do império colonial. A monarquia perdoava seus defeitos para reforçar alianças com aqueles súditos poderosos, radicados em territórios remotos, disputados por outras potências européias. Bom exemplo foi o do filho bastardo do governador do Maranhão, o mameluco Bento Maciel Parente. Ele lutou contra os holandeses e foi agraciado pelo rei com o título de cavaleiro da Ordem de Cristo. Sua participação na guerra foi tão relevante que o monarca concedeu-lhe não só o título, mas também o perdão pelos seus defeitos (bastardia e “sangue infecto”).

Nessas paragens, a ordem era imposta pelos militares. Dominando postos administrativos, terras, armas e mão-de-obra, eles freqüentemente contrariavam as leis portuguesas, mas eram tolerados devido aos postos estratégicos que ocupavam.

Quanto mais leais e úteis ao soberano, mais honra e privilégios reuniam. E essa tradição não se limitava aos portugueses e seus descendentes, pois indígenas, negros e pardos também pleiteavam benefícios. Se fossem chefes militares, melhor: consideravam-se acima das leis por contar com um trunfo valioso: a capacidade de liderar tropas e de defender os interesses régios. Por lutar na guerra contra os holandeses em Pernambuco, o chefe indígena Felipe Camarão e o líder negro Henrique Dias também receberam o perdão do rei e a promessa de pensão, cargos, título de cavaleiro e comenda (rendas provenientes da exploração territorial). Esses leais vassalos logo pleitearam ao monarca que tal patrimônio fosse herdado por seus filhos e netos. A família Camarão desfrutou desse privilégio durante cem anos.

De tão arraigada no cotidiano, a busca por privilégios sobreviveu às muitas metamorfoses do país. É possível identificá-la até hoje – como na prática de julgamento especial para policiais e militares e no direito à prisão especial para aqueles que concluíram um curso superior.

Num ambiente em que todos sempre foram desiguais perante a lei, a desigualdade não é problema. É tradição.

Ronald Raminelli é professor de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor do livro Viagens Ultramarinas; monarcas, vassalos e governo a distância (Alameda Casa Editorial, 2008)

FONTE: http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=2027

MARGINALIZADOS MAS, ESCRAVISTAS

A forte presença açoriana no sul do Brasil originou-se de uma política portuguesa de imigração idealizada e sustentada em outra política, a de “povoamento”. Essa era a forma de garantir a posse das terras mais meridionais do Brasil para Portugal. Tal colonização deve-se a um plano estratégico, no qual os açorianos foram protagonistas importantes. Quem eram, no entanto, os açorianos? Conquistados pelos portugueses em 1431, o arquipélago dos Açores é composto por três grupos de ilhas dispostas: ao Sul: Santa Maria e São Miguel; ao Centro: Terceira, São Jorge, Pico e Faial; e, finalmente, a Oeste: as ilhas Flores e Corvo. Para alguns autores, o arquipélago já no século 18 era significativamente povoado, apresentando sérios problemas sociais.
Talvez por isso, a política imigratória portuguesa tensionava resolver, de uma vez, dois problemas. A ocupação territorial no Sul do Brasil, atraindo aqueles colonos que almejavam uma “nova vida”. A povoação açoriana no extremo Sul foi, todavia, cercada de desencontros e percalços. Muitos dos casais que desembarcaram em Rio Grande deveriam ir para a região das Missões, mas devido aos conflitos decorrentes do fracasso do Tratado de Madri, os açorianos terminaram se dispersando para Viamão, Porto Alegre, Rio Pardo, entre outras localidades; vivendo em choupanas sem receberem a “terra prometida”.
Mas, qual o motivo desses casais, em grande parte, terem ficado sem terras? Na segunda metade do século 18, em um documento enviado ao governador Sá e Faria, o vice-rei, Conde da Cunha, afirmava ser: “notório que há algumas pessoas que têm duas, três ou mais sesmarias e que por esta causa ficou Sua Majestade sem ter terras para acomodar os casais.” No mesmo documento ordena que esses açorianos fossem assentados: “ainda que seja em sesmarias das mais apontentadas pessoas.”
Os registros de terras concedidas a casais açorianos datam, inicialmente, de 1770, isso pelo fato de não se ter ainda, naquele momento uma Lei de terras, que somente passaria a vigorar em 1850 no Brasil. Mesmo assim muitos não receberam ferramentas, e os provimentos necessários conforme constava no Edital de Emigração. O sofrimento dos ilhéus que vieram para o Sul, não parou por aí. Mesmo depois de assentados, podiam ser recrutados para as lides do exército ou mesmo ter suas plantações confiscadas para alimentar os soldados.
Em Conceição do Arroio os açorianos chegaram por volta de 1752, implementando a lavoura de cana de açúcar. Seria, entretanto, apressado afirmar-se que essa freguesia forjara-se açoriana, pois sabemos que já existia, nesse território uma ocupação muito antiga, de origem lagunense. Segundo o historiador Fábio Kuhn, em registro de moradores de 1785, uma espécie de censo agrário da época, constava 46 proprietários de terras, sendo que os casais açorianos estabelecidos em datas eram apenas 16 desse total.
Mas é inegável a presença dos ilhéus no litoral norte do Rio Grande do Sul, e as marcas de sua cultura se não permaneceram originais, pelo menos, se mesclaram – com o tempo – à de outras etnias que também se fixaram nessa região. Uma outra questão interessante é o fato dos açorianos possuírem ou não escravos. Em seu estudo sobre a escravidão no Brasil meridional, Fernando Henrique Cardoso apontava para uma reflexão que parecia tornar esse fato bastante improvável. Todavia, Helen Osório, em seu doutoramento, questionou vários aspectos sobre esse estudo de FHC, analisando, através de inventários, a categoria social dos pequenos agricultores, dentre os quais se encontravam muitos açorianos e constatou-se que 75% possuíam escravos.
Em Conceição do Arroio, o próprio Pascoal Marques da Rosa que era açoriano e se tornou um importante proprietário da região, era também proprietário de trabalhadores escravizados. Não somente ele, mas os seus descendentes, na geração seguinte, foram escravistas. Açorianos, mas também escravistas.

Prof. Jerri Almeida

domingo, 14 de março de 2010

Ciências Humanas e suas Tecnologias - ENEM



VEJA ABAIXO OS CONTEÚDOS E HABILIDADES QUE A PROVA DO ENEM EXIGE DO ALUNO NA ÁREA DAS CIÊNCIA HUMANAS E SUAS TECNOLOGIAS

Diversidade cultural, conflitos e vida em sociedade
Cultura Material e imaterial; patrimônio e diversidade cultural no Brasil.
A Conquista da América. Conflitos entre europeus e indígenas na América
colonial. A escravidão e formas de resistência indígena e africana na América.
História cultural dos povos africanos. A luta dos negros no Brasil e o negro na
formação da sociedade brasileira.
História dos povos indígenas e a formação sócio-cultural brasileira.
Movimentos culturais no mundo ocidental e seus impactos na vida política e
social.
Formas de organização social, movimentos sociais, pensamento político e
ação do Estado
Cidadania e democracia na Antiguidade; Estado e direitos do cidadão a partir da
Idade Moderna; democracia direta, indireta e representativa.
Revoluções sociais e políticas na Europa Moderna.
Formação territorial brasileira; as regiões brasileiras; políticas de reordenamento
territorial.
As lutas pela conquista da independência política das colônias da América.
Grupos sociais em conflito no Brasil imperial e a construção da nação.
O desenvolvimento do pensamento liberal na sociedade capitalista e seus
críticos nos séculos XIX e XX.
Políticas de colonização, migração, imigração e emigração no Brasil nos séculos
XIX e XX.
A atuação dos grupos sociais e os grandes processos revolucionários do século
XX: Revolução Bolchevique, Revolução Chinesa, Revolução Cubana.
Geopolítica e conflitos entre os séculos XIX e XX: Imperialismo, a ocupação da
Ásia e da África, as Guerras Mundiais e a Guerra Fria.
Os sistemas totalitários na Europa do século XX: nazi-fascista, franquismo,
salazarismo e stalinismo. Ditaduras políticas na América Latina: Estado Novo no
Brasil e ditaduras na América.
Conflitos político-culturais pós-Guerra Fria, reorganização política internacional e
os organismos multilaterais nos séculos XX e XXI.
A luta pela conquista de direitos pelos cidadãos: direitos civis, humanos, políticos
sociais. Direitos sociais nas constituições brasileiras. Políticas afirmativas.
Vida urbana: redes e hierarquia nas cidades, pobreza e segregação espacial.
Características e transformações das estruturas produtivas
Diferentes formas de organização da produção: escravismo antigo, feudalismo,
capitalismo, socialismo e suas diferentes experiências.
Economia agro-exportadora brasileira: complexo açucareiro; a mineração no
período colonial; a economia cafeeira; a borracha na Amazônia.
Revolução Industrial: criação do sistema de fábrica na Europa e transformações
no processo de produção. Formação do espaço urbano-industrial.
Transformações na estrutura produtiva no século XX: o fordismo, o toyotismo, as
novas técnicas de produção e seus impactos.
A industrialização brasileira, a urbanização e as transformações sociais e
trabalhistas.
A globalização e as novas tecnologias de telecomunicação e suas
conseqüências econômicas, políticas e sociais.
Produção e transformação dos espaços agrários. Modernização da agricultura e
estruturas agrárias tradicionais. O agronegócio, a agricultura familiar, os
assalariados do campo e as lutas sociais no campo. A relação campo-cidade.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Fronteiras entre o Real e o Imaginário: O diálogo possível entre História e Literatura

Jerri R. Almeida
Historiador. Autor do livro: Heróis de Papel: As representações sobre a Revolução Farroupilha na Literatura


A produção literária, desde a Grécia Antiga, vem moldando seus enredos e suas tramas utilizando-se de contextos e fatos históricos. Os romances épicos, que em muitos casos terminam virando, contemporaneamente, filmes ou novelas de grandes sucessos, exploram os aspectos de época, muitas vezes, adicionando elementos mentais e culturais de nosso tempo. Essa é uma questão perigosa, pois pode gerar os famosos anacronismos históricos. Seria algo como um romance que se passa no Egito, na época de um faraó qualquer, falar em “burguesia egípcia”. Ora, “burguesia” é um conceito que começa a ser construído por volta dos séculos XII-XIII, no Ocidente Medieval. Portanto, romances onde conceitos ou idéias são usados fora de seu contexto histórico, tornam-se anacrônicos.
Todavia, a literatura propõe-se, nesses casos, a uma reinterpretação lúdica da História. Se, por um lado isso agrada ou atinge os leitores, por outro, desagrada os historiadores que vêem em tal postura, uma deturpação da memória histórica, ou seja, a subjetividade do escritor reescrevendo, idilicamente a História. Tal problema é pertinente, a nível teórico, talvez porque seja essa a representação que permanecerá não somente na memória individual do leitor, mas na própria memória coletiva das gerações.
Assim sendo, o texto literário resguarda em suas entranhas uma boa dose de “perversidade”, isto é, uma intencionalidade nem sempre clara, um componente ideológico que, independente do que pensa o autor, ganha vida própria na mente de cada novo leitor. Bakhtin assevera que “A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial.” Logo, a Literatura, assim como a História, têm o poder de criar representações coletivas, forjando tradições, mitos e identidades.
Ocorre que, a partir, principalmente da segunda metade do século XX, a História passou a valorizar a produção literária enquanto fonte para a pesquisa historiográfica. A problematização do texto ficcional permite ao historiador um descortinar de novos referenciais, em seu modelo de análise. Sabemos que a narrativa ficcional, ao alcançar nível artístico elevado, pode torna-se valiosa fonte documental, quando expressa os cenários, a linguagem, as concepções e visões de mundo, as relações de dominação de classes, etc.
Depreende-se que o “diálogo” entre História e Literatura se torna uma via possível de estudos de fronteiras. Em que pese essa constatação, do ponto de vista de sua função, o papel do historiador não é fazer Literatura. A tendência de historiadores utilizarem-se da produção literária, ao longo e, mais intensamente no final do século XX, para a produção do conhecimento histórico, abriu um leque de questionamentos no que, para alguns, seria a transformação da História (enquanto área do conhecimento científico) em uma espécie de expressão da própria Literatura. Nesse sentido, Chartier foi incisivo ao afirmar: ”o historiador não faz literatura”, pois o ofício de historiador, para ele, possui “operações específicas” que podem ser relacionadas na seguinte dinâmica metodológica: construção e tratamento de dados, produção de hipóteses, crítica e verificação de resultados, validação da adequação entre o discurso do conhecimento e seu objeto.
A seu turno, a Literatura não é somente um fenômeno estético, mas também uma manifestação cultural e, sob esse aspecto, possui imensa organicidade de registros da experiência humana. A obra literária, portanto, dialogando com os diversos contextos sócio-culturais, permite ao historiador uma leitura problematizada, permeada de possibilidades para um “algo mais” em termos de análise da construção dos discursos e representações sobre o passado.
Logo, em cada época, as representações , através dos elementos discursivos, tratam de concretizar o desejado, o vivido e o não-vivido, os sonhos e aspirações: o bom cidadão, a mulher ideal, o valente guerreiro. A Literatura, nesse particular, é enfática, como apresentou Aristóteles na Poética: “[...] se apreende que o poeta conta, em sua obra, não o que aconteceu e sim as coisas quais poderiam vir a acontecer e que sejam possíveis tanto da perspectiva da verossimilhança como da necessidade.”

Referências Bibliográficas

BAKHTIN, Michail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 1997. p. 95
MAESTRI, Mário. Deus é Grande o Mato é maior. História, trabalho e resistência dos trabalhadores escravizados no RS. Passo Fundo: UPF, 2002. p.131.
CHARTIER, Roger. A história hoje: dúvidas, desafios, propostas. Estudos Históricos, n. 13, Jan/Jun. 1994. p. 110-112.
Entendemos por “representação” as práticas e os sistemas simbólicos por meios dos quais os significados são produzidos.

terça-feira, 9 de março de 2010

SURGIRAM MUDANÇAS, MAS A EXPLORAÇÃO CONTINUAVA – O BRASIL NA REPUBLICA VELHA (1889-1930)

Após o golpe militar que acabou com monarquia, o Brasil mudava sua forma de governo e se transformava uma República. Uma nova bandeira foi criada para substituir a antiga bandeira do Império. O lema da bandeira nacional: “Ordem e Progresso” veio da filosofia positivista do francês Augusto Comte, que pregava que o progresso somente pode ser atingido através da ordem.

Em 1891 foi estabelecida uma nova Constituição para o Brasil. Ela estabelecia, entre outras coisas:

Forma de governo – o Brasil adotava a República e seus agentes políticos (presidente, governador, prefeito, deputados, senadores, vereadores) exerceriam mandatos por tempo limitado e seriam eleitos pelos cidadãos;

Forma de Estado – o Brasil adotava o “federalismo”, isto é, os estados teriam liberdade para eleger governador e deputados. Cada estado teria sua Constituição própria, que, entretanto, não poderia contrariar as normas da Constituição Federal;

Sistema de Governo – o Brasil adotava como sistema de governo o presidencialismo, ou seja, o presidente da república exerceria o poder executivo máximo, sendo auxiliado por ministros.

Nos primeiros tempos da República, predominou o poder político nas mãos dos militares, mas logo depois, a partir de Prudente de Morais (1894-1898), instituiu-se uma oligarquia política onde o poder passou a ser dominado pelos grandes fazendeiros. Tal como ocorria nos últimos anos do Império, o voto continuou a ser permitido apenas às pessoas alfabetizadas, maiores de 21 anos. Estavam excluídos do direito de voto os: mendigos, criminosos, soldados, as mulheres (que eram, nessa época, quase metade da população) e os religiosos. Além disso, o voto era aberto, ou seja, o eleitor era obrigado a revelar publicamente o candidato em que votou, o que possibilitava aos grandes fazendeiros pressionar os eleitores na hora da votação.

Naquela época não existia também uma “justiça eleitoral”, como existe hoje, para fiscalizar as eleições. Sem um controle sério sobre as eleições, o processo eleitoral sofria as mais diversas fraudes: havia pessoas que votavam com o nome de outras pessoas que já haviam morrido; pessoas que votavam duas vezes, etc. O controle do processo eleitoral estava, portanto, nas mãos das elites dominantes.

Foi nessa época, também que o casamento passou a ser feito por um juiz, num cartório e passou a ser considerado o único legitimamente reconhecido. Assim, o casamento oficial deixou de ser feito na igreja para se realizar no cartório. Houve uma separação entre a Igreja e o Estado e, com isso, o catolicismo deixou de ser a religião oficial do Estado Brasileiro.

No período da República Velha, o chamado “coronelismo” existiu em diversas partes do Brasil, do Nordeste ao Rio Grande do Sul, só que de maneira diferente. De forma geral, podemos considerar por coronelismo o poder local dos grandes fazendeiros. O coronel, caracterizado pelo prestígio e poder de mando, era o chefe político local ou regional, geralmente um latifundiário, cujo poder era maior ou menor de acordo com o número de votos por ele controlado para assegurar nas eleições a vitória dos seus candidatos. .

Geralmente, o coronel exercia uma série de funções que o fazem temido e obedecido. Ele dispensava favores para seus empregados e conhecidos, ajudando doentes, arrumando empregos, apadrinhando os filhos de amigos e serviçais. Aos familiares e amigos ele distribuía empregos públicos, emprestava dinheiro, protegia-os da polícia e de inimigos políticos. Todos esses “favores”, no entanto, eram devidamente “cobrados” em época de eleições, quando o fazendeiro exigia o apoio para seus candidatos políticos.

O famoso “voto de cabresto” era outra tática usada pelos grandes proprietários rurais. Tratava-se de pressionar ou coagir o eleitor a votar em determinado candidato utilizando-se, para isso, dos seus jagunços e, até mesmo, de matadores profissionais para intimidá-lo.

Do pondo de vista econômico, o grande produto de exportação foi o café. O segundo produto foi a borracha da Amazônia, superando o açúcar. Era grande a compra desse produto pelos países mais desenvolvidos, principalmente, após a invenção da bicicleta com pneus de borracha, e, depois, com o surgimento do automóvel.

No nível federal, a República Velha manteve, por um bom tempo, a chamada “política do café-com-leite”. Essa política se caracterizou pela liderança dos chefes políticos do Partido Republicano Paulista e do Partido Republicano Mineiro, e resultou, entre outras coisas, num revezamento de presidentes paulistas e mineiros até 1930. Na prática, a política do café-com-leite foi um acordo entre os grupos políticos de São Paulo (que produzia café) e Minas Gerais (que produzia leite) para um apoio mútuo em época de eleição para presidente. Nessa época esses dois estados (SP-MG) possuíam a maior quantidade de eleitores do país, de forma que eles, juntos, podiam decidir as eleições. Em uma época, Minas indicava o seu candidato e São Paulo o apoiava. Quando seu mandato terminava, era a vez de São Paulo indicar o seu candidato, e Minas o apoiava.

Na prática, nessa época não havia efetivamente uma “democracia”, pois a população mais pobre era facilmente manipulada pela classe mais abastada. Mas isso não significa que o povo brasileiro era passivo diante da exploração. Durante a República Velha houve várias revoltas populares contra o governo.